domingo, 29 de setembro de 2013

O sonho de ser mais.

Desenho sem título - Leonardo Etero





O que eu queria ter sido 



Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.

O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de "a protetora dos animais". Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la. E eu sentia o drama social com tanta intensidade que vivia de coração perplexo diante das grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes menos privilegiadas. Em Recife eu ia aos domingos visitar a casa de nossa empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia como que me prometer que não deixaria aquilo continuar. Eu queria agir. Em Recife, onde morei até doze anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais alguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social. E lembro-me de como eu vibrava e de como eu me prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender os direitos dos outros.

No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.

É pouco, é muito pouco.


Clarice Lispector, in "Crônicas para jovens: de bichos e pessoas"



quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A permanência é uma ilusão...



"A permanência é uma ilusão. Somente a mudança é real.
 É impossível pisar duas vezes no mesmo rio"
Heráclito




Ciclos



Sabe, de morrer eu entendo,
Desenho sem título - Leonardo Etero
Frase extraída do poema "Barro" de Cláudio Bento - MG
já nasci muitas vezes
em tempos de seca
em dias de luto...

Sabe, de nascer eu entendo,
já morri muitas vezes
em tempos de baile
em dias de santo...

Olha, de morrer eu entendo,
já morri muitas vezes
apegando às mágoas
acumulando bens.

Olha, de nascer eu entendo,
já nasci muitas vezes
renunciando mágoas
acumulando o bem.

Sabe, de nascer eu entendo,
já morri muitas vezes
de alegria de juventude de saúde...

Sabe, de morrer eu entendo,
já nasci muitas vezes
de tristeza de velhice de doença...

Olha, de morrer eu entendo
de nascer também;
já nasci muitas vezes
outras vezes morri...
E quase que diariamente
eu morro em mim e nasço em você
e quase que regularmente
eu nasço em mim e morro em ti.


Fernanda Tinoco Ramos 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Presente de Carolina!



Detalhe da escultura "pé-pé" ou "eu não tenho medo" - Leonardo Etero
CAROLINA


um palito separa
o prazer da dor
um ponto separa
o prazer da dor
é como se você
estivesse numa e
s
c
a
d
a
de três degraus
1
2
3
e do degrau
do meio,
um degrau pra cima
é o prazer
um degrau pra baixo
dor.
aí eu pergunto
onde dói mais
onde dói menos
e porque me sinto feliz
e triste
ao mesmo tempo.


Bruna Beber, in "A fila sem fim dos demônios descontentes"



sábado, 21 de setembro de 2013

À espera de mudanças.





Desenho sem título - Leonardo Etero
Espera


A primavera vai voltar
e logo virá o natal e depois
o ano novo e o cheiro de mato seco
vai invadir a casa.


As horas vão passar;
a vida viaja em ciclos
eu vou envelhecer
e as horas vão passar –
dia após dia
semana após semana
mês após mês –
mais um ano vai passar.


A primavera vai voltar
e com ela as cores o calor
um ligeiro cheiro de mato seco;
e quando o verão chegar o cheiro
vai invadir a casa.


Circunstâncias mudam de lugar
mas certos discos sempre vão tocar e eu
vou esperar ao som de Tom Jobim.


Mais uma primavera
está de volta e só você não volta
pra mim.



Fernanda Tinoco Ramos
 


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O prato do dia: as palavras também alimentam.




A poesia do dia

 
Desenho "Bloom" - Leonardo Etero
Sonho em tirar a poesia do caderno
levá-la pra ver o mundo.

Sonho com a poesia concreta  –  
não a dos concretistas nem a de concreto
barro tinta plástico ferro...
como se vê em tantas obras de arte obras de rua.

Sonho em pegá-la pela mão
puxá-la do fundo do papel ofício
ou do microsoft office
e carregá-la comigo nas 24 horas;

e nos fins de semana conduzi-la
delicadamente à beira do mar;
e nos dias de chuva permitir
que as gotas caiam em sua testa
molhem suas lágrimas;
e nas noites dos dias longos cantar músicas
de ninar desejando que ela nunca durma...

Sonho com a poesia concreta que resgato
do fundo da folha e ponho
no fundo do olho. Quero a poesia que vai da tela touch
para lente de contato. Poesia lente de aumento.


Fernanda Tinoco Ramos 


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Abrindo os trabalhos!

Para abrir, conto com o auxílio de Quintana. Já que é para explorar abismos...



Escadas


Desenho "Escadas Enrolantes" - Leonardo Etero
Escadas de caracol
Sempre
São misteriosas, conturbam...
Quando as desce, a gente
Se desparafusa...
Quando a gente as sobe
Se parafusa
             o peito
                        estreito
                                  o teto descendo
Descendo descendo como nas histórias de imortal horror!
Mas de que jeito,
Mas como pode ser,
Morrer cair rolar por uma escada de parafuso?
Além disso não têm, pelo o que dizem, nenhuma acústica...
Oh! não há como as escadarias daqueles antigos edifícios públicos
Para ser assassinado...
Porém não fiques tão eufórico,
 nem tudo são rosas:
Há,
No sonho das velhas casas de cômodos onde moras,
Passos que vêm subindo degrau por degrau em direção ao teu quarto
E "sabes" que é um fantasma chamejante e fosfóreo
 o corpo todo feito de inconsumíveis labaredas verdes!
O melhor
mesmo
É fechar os olhos
E pensar numa outra coisa...
Pensa, pensa
 o quanto antes!
Naquelas pobres escadas de madeira das casas pobres
– escurinho dos teus primeiros aconchegos...
Pensa em cascatas de risos
Escada abaixo
De crianças deixando a escola...
Pensa na escada do poema
Que tu
          comigo
                     vens descendo
                                             agora...
(Hoje em dia todas as escadas são para descer)
Mas não! este poema não é
Nenhum
Abrigo
Antiaéreo...
Ah, tu querias que eu te embalasse?!
Eu estava, apenas, explorando uns abismos...


Mario Quintana, in "Antologia poética".